“Se você não está fazendo nada de errado, o que tem a esconder?” Bruce Schneier retruca: “Privacidade não tem a ver com esconder algo errado.”
Autor: Bruce Schneier
Publicado inicialmente em Wired
18 de maio de 2006
Tradução: Hudson Lacerda (20 de agosto de 2015)
Original: https://www.schneier.com/essays/archives/2006/05/the_eternal_value_of.html
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A réplica mais comum contra quem defende a privacidade — apresentada por aqueles que são a favor de checagem de documentos, câmeras, bases de dados, mineração de dados e outras medidas de segurança por atacado — é esta linha: “Se você não está fazendo nada de errado, o que você tem a esconder?”
Algumas respostas inteligentes: “Se não estou fazendo nada de errado, então você não tem motivo para me vigiar.” “Porque o governo define o que é errado, e vive mudando a definição.” “Porque você pode fazer algo de errado com minha informação.” Meu problema com tiradas como essas — por mais corretas que sejam — é que elas aceitam a premissa de que privacidade tem a ver com esconder algo errado. Não tem. A privacidade é um direito inerentemente humano e um pré-requisito para a manutenção da condição humana com dignidade e respeito.
Dois provérbios expressam melhor a idéia: Quis custodiet custodes ipsos? (“Quem vigia os vigilantes?”) e “Poder absoluto corrompe absolutamente.”
O Cardeal Richelieu compreendia o valor da vigilância, quando disse sua famosa frase: “Se me derem seis linhas escritas pela mão do homem mais honesto, acharei nelas algo que o leve ao cadafalso.” Vigie uma pessoa por tempo suficiente, e você encontrará alguma coisa para prendê-la — ou ao menos chantageá-la. A privacidade é importante porque, sem ela, haverá abuso da informação obtida por vigilância: para espiar, para vender a informação a marqueteiros e para espionar inimigos políticos — quaisquer que sejam eles no momento.
A privacidade nos protege de abusos por aqueles que estão no poder, mesmo que não estejamos fazendo nada de errado no momento da vigilância.
Não estamos fazendo nada de errado quando fazemos amor ou vamos ao banheiro. Não estamos deliberadamente ocultando nada quando procuramos lugares privados para refletir ou conversar. Mantemos diários secretos, cantamos na privacidade do chuveiro e escrevemos cartas a amores secretos e depois as queimamos. A privacidade é uma necessidade humana básica.
Um futuro em que a privacidade sofresse constante assalto era tão estranho aos autores da Constituição que nunca lhes ocorreu declarar a privacidade como um direito explícito. A privacidade era inerente à nobreza do seu ser e sua causa. É claro que ser observado em sua própria residência não era razoável. Vigiar em si era um ato tão indecoroso que era algo inconcebível entre os cavalheiros da época. Você vigiava criminosos condenados, não cidadãos livres. Você mandava em sua própria casa. Isso é intrínseco ao conceito de liberdade.
Afinal, se nós formos observados em todos os aspectos, estaremos constantemente sob ameaça de correção, julgamento, crítica, e até do plágio de nossas caraterísticas únicas. Tornaremos-nos crianças, acorrentadas sob olhos vigilantes, constantemente amedrontadas de que — seja agora ou num futuro incerto — as pegadas que deixamos atrás de nós retornem para nos envolver, por qualquer autoridade que aponte nossos atos então privados e inocentes. Perderemos nossa individualidade, porque tudo o que fazemos é observável e registrável.
Quantos de nós já não paramos durante uma conversa, nos últimos quatro anos e meio, percebendo subitamente que poderíamos estar sendo bisbilhotados? Provavelmente foi uma conversa ao telefone, mas pode ter sido um e-mail ou uma troca de mensagens instantâneas ou uma conversa em praça pública. Talvez o assunto fosse terrorismo, ou política, ou o Islã. Paramos subitamente, momentariamente temerosos de que nossas palavras possam ser interpretadas fora de contexto, então rimos de nossa paranóia e continuamos. Mas nossa expressão já mudou, e nossas palavras são sutilmente alteradas.
Essa é a perda de liberdade que encaramos quando nossa privacidade nos é tomada. Essa é a vida na antiga Alemanha Oriental, ou a vida no Iraque de Saddam Hussein. E é o nosso futuro, na medida em que permitirmos um olho permanentemente intrusivo voltado para nossas vidas pessoais, privadas.
Muitas pessoas caracterizam erroneamente o debate como “segurança versus privacidade”. A escolha real é liberdade versus controle. Tirania é tirania, não importa se ela surge sob ameaça de ataque físico estrangeiro ou sob escrutínio constante de uma autoridade doméstica. Liberdade requer segurança sem intrusão, segurança somada a privacidade. Vigilância policial generalizada é a definição exata de um estado policial. E é por isso que devemos defender a privacidade, mesmo quando não temos nada a esconder.